Sunday, October 17, 2010

Entrevista exclusiva à Jornalista Conceição Queiróz, TVI



Na continuação do projecto lançado por este blogue, publica-se hoje a 4.ª entrevista. Devo dizer que tem sido um privilégio contactar com estes profissionais e com tudo aquilo que eles no ensinam, nas suas vivências, nos seus trabalhos, na sua vida...


Desta vez conversei com a jornalista da TVI, Conceição Queiróz, cuja entrevista poderá ler na íntegra:


(Foto de Ana Lopes Gomes)
1) A Conceição sai aos 12 anos de Moçambique. Que recordações guarda do seu tempo de criança nesse país africano?

Recordo essencialmente o sentido de família. Os almoços de domingo, os cheiros e os aromas da fruta, o camarão tigre, o Natal debaixo de 40 graus, as voltas à Ilha de Moçambique com o meu pai num barco a motor veloz. A vida em África é levada noutro ritmo. Temos todo um tempo que é absolutamente nosso. E isso não tem preço.



2) Sei que os seus pais gostavam que tivesse tirado um curso ligado à saúde, nomeadamente, fisioterapia. O que a levou a enveredar pelo caminho do Jornalismo?

Pois é… Os meus pais queriam muito que eu tivesse seguido medicina ou qualquer outro curso da área da saúde. Poderia ter sido fisioterapia, enfermagem, análises clínicas. Acabei por trilhar os caminhos do jornalismo, influenciada por uma professora de Português que gostava muito de mim, que puxava por mim, incentivava-me, fazia-me compreender uma série de outras coisas pelas quais não me interessava minimamente. Foi o caso do jornalismo. É verdade que cresci a ouvir histórias incríveis que as minhas avós contavam, mas não foi isso, definitivamente, que me levou a este mundo do jornalismo.



(Fotografia de Ana Lopes Gomes)


3) Quais foram as suas primeiras experiências profissionais? Ainda se lembra da sua primeira peça jornalística?

Comecei na imprensa, no Grupo Semanário. O meu primeiro trabalho foi publicado há 16 anos, em 1994. Foi uma entrevista à Campeã Nacional de Karting… Lembro-me perfeitamente.



4) A Conceição já foi professora de português. O que lhe apraz dizer acerca do novo acordo ortográfico nos países de LOP?

O novo acordo ortográfico é aplaudido por uns mas encontra resistência por parte de outros. As mudanças nem sempre são bem aceites mas parece-me razoável que nos habituemos às novas regras. De qualquer maneira, vivemos um momento de transição uma vez que até 2015 podemos manter a grafia que utilizamos hoje. É uma fase de adaptação e o novo conversor de documentos para este novo acordo ortográfico já foi apresentado.



5) Aqui há uns tempos atrás lançou o livro «Serviço de Urgência». Como foi contactar diariamente com pessoas que estavam entre a vida e a morte, pessoas que num dia viu eventualmente sorrir e no outro já não estavam entre nós?

Acompanhava-os a partir do momento em que davam entrada na Urgência do Santa Maria. E quando isso acontecia, as pessoas já não estavam bem. Foi das experiências mais duras e mais envolventes. Estar ali, frente a frente com a fragilidade do ser humano mas também com aquilo que é o limite da ciência. Há coisas que a própria medicina não consegue controlar. E isso desvenda-se claramente sempre que se perde uma vida.






6) A Conceição é uma mulher de andar no terreno, de investigar e a verdade é que muitas vezes deve estar semanas fora do País, no continente africano, por exemplo, com as mínimas condições, a que nós portugueses estamos habituados. Recorrendo um pouco à reportagem que nos apresentou, sobre os «Meninos do Jamba», como foram os seus dias, as suas rotinas, na vivência com estas crianças?

Como não sou um ser humano de rotinas (fujo a essa vivência estática, quase rígida que suporta a maioria dos homens e das mulheres…) adapto-me bem e rapidamente a quaisquer cenários. É no terreno que a minha profissão se concretiza, é ali que tudo ganha sentido, de caras com um outro mundo… Os entrevistados, os factos, a verdade. As crianças eram o centro das atenções na Jamba Mineira. Ouvi-as com atenção, sentei-me no seu chão. Percebi depressa que precisam apenas de uma oportunidade. Tratavam-me por mana, por madrinha, por mamã. Lutei para voltar a Angola e levar os donativos que juntei depois da emissão da reportagem. Os portugueses continuam solidários.



7) Pelo histórico das suas reportagens, denota-se que é uma mulher ligada a causas, aos outros. Sente que de certa forma com as suas reportagens está a ajudar os mais desfavorecidos?

Gosto das pessoas, acima de tudo. Não sei se as minhas reportagens ajudam os mais desfavorecidos mas é preciso mostrar, temos de revelar o que acontece. É bom que as pessoas compreendam de uma vez por todas que o mundo não começa nem acaba nas suas ruas, nas suas pracetas.



8) Ainda há pouco tempo, mais um trabalho seu e de toda a sua equipa premiado, «Música no Coração». O papel da música enquanto instrumento de inclusão social. Como é que nasce num jornalista, no caso, a Conceição, a ideia, a criatividade, de procurar histórias que nos preenchem, enquanto seres humanos? Ao fim e ao cabo como nasceu esta reportagem?



Tudo começa pela ideia, precisamente. Estou atenta ao que se passa… Pego no meu carro, vou aos sítios falar com as pessoas, compreender, tentar descodificar. Mas por vezes, uma breve num jornal também me pode inspirar e então fazes 30, 35 minutos em televisão a partir de uma notícia que passou completamente ao lado da maioria dos leitores. Outras vezes, escrevem-me, telefonam-me, falam-me de situações que merecem um trabalho de fundo. A reportagem “Música no Coração” nasce depois de eu ter visto na RTP 2 uma peça de dois ou três minutos e depois na RTP África com mais algum tempo… E mesmo assim eu achava que se podia fazer mais… Que aquela temática merecia continuar a ser tratada e claro, dando-lhe tempo. Fiz então um trabalho de 40 minutos mas tinha material para uma hora. Contrariando as expectativas acabou por ser a reportagem mais vista do ano de 2009 com picos de 2 milhões de telespectadores. Os miúdos da Orquestra Geração seduziram os portugueses.



9) «A Escola da Vida» foi outra reportagem de mérito, onde a Conceição acompanhou o dia-a-dia de estudantes de mais de 35 nacionalidades. Acha que o racismo, a exclusão social, são problemáticas que têm vindo a diminuir?

Quero acreditar que o racismo diminui. Temos bons exemplos. “A Escola da Vida” prova isso mesmo. Já muita coisa mudou mas é um caminho que estamos a fazer. A exclusão social não… Não me parece que esteja a reduzir. Porque aqui estamos a falar de algo que imediatamente se associa à pobreza, também à falta de poder e de acesso ao mais elementar. E a pobreza aumenta aos olhos de quem quiser ver. Obviamente que a situação de sem-abrigo é o registo extremo da exclusão social mas o desemprego faz com que se percam quase todas as redes sociais, inclusivamente os amigos. A exclusão social pode começar nesse processo de exclusão do mercado de trabalho… E é perigosíssimo.



10) Ainda há poucos dias, esteve num campo de refugiados, no Quénia. Quais são as grandes dificuldades de uma equipa de jornalistas ao entrar num local como este, onde a guerra, a fome, a morte são constantes?

Acho que tudo depende da flexibilidade de espírito, da capacidade de nos adaptarmos. Em relação às dificuldades… Jamais serei indiferente ao sofrimento humano. Onde quer que esteja. No Quénia, naquele campo de refugiados, vi o que nunca imaginara. Crianças enlouquecidas. Não tem explicação… Enlouquecem porque o pai foi esquartejado diante delas, porque a mãe estava grávida e abriram-lhe a barriga a sangue frio. Outros foram mutilados. É isso que custa. O resto dos obstáculos perde sentido para a equipa de reportagem. Falo por mim, naturalmente.



11) Em alguma reportagem que fez ao longo dos mais de 14 anos de experiência sentiu medo, onde, eventualmente, a sua vida pudesse estar em risco?

Nada de grave. Só fui apedrejada uma vez e tentaram atropelar-me ao de leve… Também fui ameaçada para não fazer uma certa reportagem que punha em causa o bom-nome de uma família a que pertencia uma enfermeira que atropelou mortalmente um rapaz de 20 e poucos anos.



12) Quando se trata de reportagem onde os entrevistados apenas falam crioulo, por exemplo, é a própria Conceição a fazer as traduções para o português, ou conta com a ajuda de um tradutor?

Aconteceu-me em Cabo Verde. Algumas pessoas só falavam crioulo. Pedi a um taxista que me dissesse como perguntar o que queria, escrevi exactamente como se pronunciava e fiz as entrevistas, dispensando o tradutor. No interior de Moçambique sucedeu o mesmo. Explicaram-me como pronunciar algumas das palavras, compreendi rapidamente, registei, tirei todas as notas necessárias e comuniquei através da língua local. Correu muitíssimo bem. Mas claro que há situações em que não se pode dispensar o tradutor.



13) Quando se encontra, em países, tão longe de Portugal, como por exemplo o Quénia, a reportagem é editada e pronta para exibição, já em Portugal, ou toda a matéria é enviada do país, onde se encontra no momento?

No Quénia tínhamos actualidade. As coisas estavam a acontecer no campo de refugiados. Eu e o repórter de imagem fomos enviando as peças já feitas, editadas, prontas para emissão, diariamente.



14) Assistimos há alguns meses a uma reportagem sua sobre a cidade de Lisboa, sobre o comércio tradicional, as tradições, as vivências de um povo. Quer nos falar um pouco sobre esta reportagem e sobretudo a sensação que sentiu ao saber, que um dos seus entrevistados, pouco tempo depois da reportagem faleceu?

Foi tão enriquecedora essa reportagem, esse pequeno retrato de uma Lisboa antiga. Passei a gostar ainda mais da capital, eu que já tinha paixão pela cidade. Queria conhecer melhor os que naturalmente resistem à modernidade, os que ainda vendem porta a porta ou faziam compras na drogaria da Rua da Lapa, onde o senhor Fernando (o entrevistado que faleceu) trabalhou durante décadas. Fiquei sem graça nenhuma quando recebi o telefonema do filho a avisar-me que o pai tinha morrido na véspera de Natal. A promoção da reportagem já estava no ar, não sabia o que fazer. O mínimo foi dedicar-lhe a reportagem e ir ao funeral, com missa de corpo presente na Basílica da Estrela. Não me esqueço que pediu muito que o avisasse do dia da emissão da reportagem e que lhe oferecesse um DVD com a cópia do trabalho. Já o fiz. Entregamo-lo ao filho.



15) A distinção do Prémio AMI - Jornalismo Contra a Indiferença, fá-la acreditar que é possível mudar mentalidades, alertar os governantes? Acredita que o facto de ser moçambicana, de cor, contribuiu ao longo de toda a sua vida numa luta mais aguerrida, contra o racismo, por exemplo?

O prémio é sempre a valorização do trabalho de bastidores uma vez que não é fácil fazer uma boa reportagem. Em relação às mentalidades, não é algo que se altere de um dia para o outro. Já os murros no estômago, esses alertas para determinadas realidades que se escondem, são necessários. Quanto ao facto de ser africana… Nunca usei isso como bandeira. As pessoas têm sempre muito mais curiosidade pelo meu trabalho e eu sinto isso mas não me incomoda minimamente. Sou sempre muito bem tratada, muito acarinhada pelo público.



16) Trocaria a vida de repórter por pivô de informação? Porquê?

Não, não troco. Até porque já tive a experiência de estúdio. Na Televisão de Cabo Verde apresentei o Jornal Desportivo e foi óptimo mas eu amo estar no terreno.







(Fotografia de Ana Lopes Gomes)




17) Conceição que tipo de trabalhos poderemos continuar a ver daqui para a frente da sua autoria?

Continuo na equipa da grande reportagem…



18) Para terminar esta entrevista, uma pergunta mais intimista - o seu cabelo, é de facto uma imagem de marca, de reconhecimento. Confesse-nos, que preocupações diárias tem com ele?

O meu cabelo?! Imagem de marca? Para mim é um problema. Uma trabalheira. Ora o original afro, ora um rabo-de-cavalo para não me chatear, ora tranças corridas para acordar penteada. Mas cá nos entendemos.



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